sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Sobre enxaquecas !

Os mecanismos das doenças raramente são simples. Mesmo a descoberta do mycobacterium não foi a solução final para a tuberculose, que somente acomete alguns indivíduos e porque é mais prevalente entre a população de baixa renda e no Terceiro Mundo.
Com relação a enxaqueca, Graham comparou sua fisiopatologia com a fábula dos velhos sábios e cegos aos quais se permitia que tocasse somente uma parte de um elefante. Na enxaqueca cada especialista de determinada área tenta enfatizar um determinado mecanismo.
A enxaqueca se caracteriza por ser uma doença neurovascular, ao contrário da crença popular acerca de sua origem (doença do fígado, problemas emocionais/psicológicos, entre outros). Ainda que não conheçamos perfeitamente todos os seus detalhes fisiopatológicos, podemos afirmar que já adquirimos razoável conhecimento a esse respeito. A seguir, detalharemos alguns dos estudos.
Teoria vascular
Graham e Wolff, em 1938, divulgaram a idéia de que a aura, a qual geralmente precede a crise migranosa, seria causada por um fenômeno de vasoconstrição e que uma vasodilatação subseqüente causaria dor.
Depressão alastrante
Olesen e cols. Observaram que a aura migranosa é associada a uma redução do fluxo sangüíneo cerebral que se propaga a uma velocidade de 2 mm/min a 3 mm/min, iniciando-se, geralmente, no pólo posterior do cérebro, por vezes envolvendo todo o hemisfério cerebral, não respeitando os territórios vasculares. Essa última constatação tornava pouco provável a teoria da vasoconstrição. Esse fenômeno foi batizado de spreading hypoperfusion e tem características semelhantes à “depressão alastrante” descrita pelo brasileiro Leão, em 1944, o qual detectou ocorrência de depressão da atividade elétrica que propagava pelo córtex em todas as direções ao estimular eletrofisiologicamente córtex de coelhos. A velocidade de propagação desses eventos se assemelhava àquela descrita por Lashley, em 1941, ao descrever sua própria aura visual. Além dessas evidências, Moskowitz e cols., em 1993, demonstraram que a passagem da depressão alastrante provocava a expressão de c-fos, um marcador não-específico da ativação neuronal no núcleo do trigêmeo. Esses experimentos sugerem a participação da depressão alastrante na fenomenologia da crise migranosa.
Sistema trigeminovascular e inflamação neurogênica
Tem-se que, durante as crises de enxaqueca, ocorre uma dilatação dos vasos sangüíneos intra e extracranianos. A fonte da dor deve ser o próprio vaso, porém os mecanismos pelos quais ela é produzida não estão bem claros; presumivelmente, uma estimulação antidrômica em fibras trigeminais que inervam os vasos intracranianos extracerebrais desencadearia nestes uma inflamatória estéril (inflamação neurogênica), ocorrendo liberação de substâncias vasoativas- substância P(SP), peptídeo vasoativo intestinal (VIP), neuropeptídeo Y (NY) e peptídeo relacionado com o gene da calcitonina (CGRP) que acarretaria aumento da permeabilidade vascular e extravasamento plasmático para a adventícia do vaso (figura 1).

Figura 1. Fisiopatologia da Enxaqueca 
Serotonina
Sicuteri,1961, descreveu que durante a crise migranosa ocorre diminuição de serotonina plasmática e seu catabólito, o ácido 5-hidróxi-indolacético, 5- HIAA, encontra-se aumentado na urina. Também nessa época já se conhecia que:
a)serotonina I.V. era capaz de abortar a crise migranosa;
b) essa substância apresentava ação constritiva em leito carotídeo, agindo sobre receptor atípico (não bloqueado por ciproeptadina ou mianserina);
c) os antimigranosos metisergida e ergotamina também possuem ação específica constritiva em território carotídeo.
Com esses fatos em mente, Humphey e cols. Conseguiram descobrir um receptor serotoninérgico semelhante em veia safena canina. Posteriormente desenvolveram um agonista específico para esse receptor, o sumatriptano (1988), droga que se mostrou muito eficaz representando significativo avanço no tratamento da crise migranosa.
Óxido Nítrico
Alguns autores afirmam que o óxido nítrico (NO) é o melhor candidato a ser o responsável pelos fenômenos dolorosos presentes em um ataque de enxaqueca , já que se trata de uma pequena molécula que atravessa as membranas facilmente, não necessita de um receptor específico e que sabidamente é capaz de produzir vasodilatação e de estimular os aferentes perivasculares, produzindo fenômenos nociceptivos.
Olesen e cols., em 1995, postulam que há evidências sólidas para a participação do óxido nítrico na fisiopatologia da enxaqueca.
Modulação Central
Goadsby e cols., a década de 80, em experimentos com animais, apresentaram vária s evidências de que a estimulação do locus ceruleus, no tronco encefálico, reduzia o fluxo sangüíneo cerebral, principalmente no córtex occiptal. Weiller e cols., em 1995 , utilizaram a tomografia por emissão pósitrons para avaliar o fluxo sangüíneo cerebral regional durante a crise de enxaqueca sem aura em nove pacientes. Registraram a ativação da substância cinzenta periaquedutal na região do núcleo dorsal da rafe e na região da ponte, próximo ao locus ceruleus, durante a crise de enxaqueca (FIGURA 2). O sumatriptano a dor e os sintomas associados, reverteu o aumento do fluxo sangüíneo cortical, porém não alterou o do tronco encefálico. Talvez a manutenção dessa ativação esteja implicada na recorrência da cefaléia, que pôr vezes ocorre quando do uso de triptanos.

Figura 2. PET durante crise enxaquecosa evidenciando ativação
do tronco cerebral ( Weiller e cols., 1995).
Bases genéticas da enxaqueca
Desde os primórdios do estudo da enxaqueca foi percebido seu componente hereditário. Living, em 1873, observou a freqüente ocorrência de enxaqueca em parentes de migranosos, além da sua maior prevalência no sexo feminino. Atualmente algumas descobertas determinadas pelo avanço científico no campo da genética têm aumentado nosso conhecimento nesse aspecto:
  • Em 1994 foi encontrado o primeiro locus de uma doença migranosa, a migrânea hemiplégica familiar, no cromossomo 19. Dois anos depois, quatro mutações diferentes na subunidade a1 de um canal de cálcio voltagem-dependente tipo P?Q, específico de cérebro, mapeadas no gene CACNL 1 A4 do cromossomo 19p 13, forma identificadas em quatro famílias com migrânea hemiplégica familiar. Das famílias portadoras dessa condição estudada, 55% tiveram o locus identificado no cromossomo 19, 15% no cromossomo 1 e 30% não foram determinados. Mutações nesse mesmo gene são a causa da ataxia episódica tipo 2 e da ataxia espinocerebelar tipo 6. A associação da enxaqueca com o canal de cálcio levanta a hipótese de esta ser uma doença dos canais iônicos;
  • A síndrome MELAS (mitochondrial encephalomyopathy, lactie acidosis and stroke-like episodes) é causada por um ponto de mutação no gene mitocondrial que está relacionado ao RNA t no nucleotídeo 3243. Nessa condição, todas as crianças de mãe afetada têm a doença e os episódios de cefaléia do tipo enxaqueca são freqüentes, principalmente no início de seu curso mórbido;
  • Uma doença cerebrovascular familiar rara denominada CADASIL (cerebral autosomal dominant arteriophaty with subcortical infarcts and leucoencephalopaty )foi descrita e teve o gene localizado no cromossomo 19p12. Pacientes com essa doença têm maior chance de ter enxaqueca com aura que a população em geral.

Breve resumo da fisiopatologia da enxaqueca

Fenômenos corticais determinam a ativação trigeminal, com liberação de substâncias vasoativas das terminações perivasculares e extensão da resposta inflamatória pelas fibras do próprio trigêmeo. Condução trigeminal dos estímulos nociceptivos para centro cerebrais superiores, onde ocorre o reconhecimento da dor.
Diagnóstico
A SIC ( Sociedade Internacional de Cefaléia), em seu item 1, estabelece a seguinte classificação para enxaqueca:
1.1. Migrânea sem aura
1.2. Migrânea com aura
1.2.1. Migrânea com aura típica
1.2.2. Migrânea com aura prolongada
1.2.3. Migrânea hemiplégica familial
1.2.4. Migrânea basilar
1.2.5. Aura de migrânea sem cefaléia
1.26. .Migrânea com aura de instalação aguda
1.3. Migrânea oftalmoplégica
1.4. Migrânea retiniana
1.5. Síndromes periódicas da infância que podem ser precursoras ou podem estar associadas à migrânea
1.5.1.Vertigem paroxística benigna da infância
1.5.2. Hemiplegia alternante de infância
1.6. Complicações da migrânea
1.6.1.Estado migranoso
1.6.2.Infarto migranoso
1.7. Dísturbio migranoso que não preenche os critérios acima
Os critérios para migrânea sem aura são os seguintes:
a) pelo menos cinco crises preenchendo critérios de B-D;
b) crises de cefaléia durando de 4 a 72 horas;
c) a cefaléia tem no mínimo, duas das seguintes características:
1. localização unilateral;
2. qualidade pulsátil;
3. intensidade moderada ou forte;
4. agravamento por subir dregaus ou atividade física de rotina.
d) durante a cefaléia, há, no mínimo, um dos seguintes sintomas:
1. náuseas e/ou vômitos;
2. fotofobia e fonofobia.
e) a história e o exame físico não sugerem causas secundárias ou estas são afastadas pela investigação apropriada.
Defini-se aura com um ou mais sintomas neurológicos inequivocamente localizáveis no córtex ou tronco cerebral que usualmente de desenvolvem de modo gradual, em 5 a 20 minutos, e habitualmente duram menos de uma hora. A aura pode preceder, acompanhar ou suceder a migrânea. Quando durar mais de 60 minutos, é denominada aura prolongada, quando dura menos de 5 minutos, aura de instalação aguda. Os sintomas da aura mais comum são corticais, pela ordem: visuais (escotomas, moscas volantes), sentidos (parestesias), motores(paresias) e disfasia. Se os sintomas forem sugestivos de acometimento do tronco cerebral, a migrânea com aura é dita migrânea basilar( vertigens, disartria, doplopia).
As complicações da migrânea são duas: a) estado migranoso: crise em que a fase de dor de cabeça dura mais que 72 horas a despeito do tratamento, podendo ocorrer intervalos sem cefaléia de menos que 4 horas (sono não incluído); b) infarto migranoso: aplica-se esse termo quando um ou mais sintomas da aura migranosa não regridem dentro de sete dias ou haja uma confirmação de infarto isquêmico por neuroimagem.
Henry e cols., em estudo nacional na França, encontraram a seguinte distribuição de freqüência de crises: menos de 1/mês: 17%; 1/ mês: 32%; 2 a 4/mês: 40%; mais de 1/semana: 10%.Encontraram também a seguinte distribuição de duração de crises: 2 a 4 horas:25%; 6 a 12 horas: 12%; 4 a 6 horas: 19%; cerca de 1 dia: 24%; de 2 a 3 dias: 15%. Quanto à intensidade da dor, intensa ou muito intensa: 58% a 85% dos pacientes. As mulheres de maneira consistente relataram seus ataques como mais intensos que os homens; também elas costumam ter maior freqüência de crises.
Peculiaridades do diagnóstico na infância
A partir de 1994 alguns pesquisadores apontaram limitações na aplicação dos critérios em crianças e propuseram modificações. A maioria das críticas refere-se à baixa sensibilidade dos critérios da SIC para a migrânea na infância, apesar da unanimidade quanto à alta especificidade destes.
Outra crítica refere-se à duração dos ataques migrânea. Os critérios da SIC propõem uma duração de 4 a 72 horas, mas, para muitos autores, os ataques de migrânea na infância apresentam freqüentemente uma menor duração.
Peculiaridades no quadro clínico nos idosos
Na faixa dos 70 anos, a enxaqueca ocorre em 5% das mulheres e 2% dos homens. No entanto, apenas 2% desses casos se iniciam após os 65 anos de idade, o que deve ser sempre lembrado ao se fazer um diagnóstico inicial de enxaqueca em idosos. Fisher, em 1986, relatou que a migrânea com aura pode se transformar em ataques periódicos de déficit neurológico no idoso, sem dor associada( aura de migrânea sem cefaléia) e investigação radiológica normal, permanecendo esse, porém, como diagnóstico de exclusão.
É importante ressaltar que, apesar da melhor metodologia estatística e da uniformização do critérios diagnósticos, a migrânea continua uma condição subdiagnosticada.
Lipton e cols. relataram que cerca de 34% dos migranosos nunca consultaram um médico pela dor de cabeça. Isso se mostra, obviamente, mais dramático em um país como o nosso, no qual considerável parcela da população não tem acesso a qualquer assistência em saúde.

Fonte:
Livro: “Cefaléias Primárias: Aspectos Clínicos e Terapêuticos”.Fernando Ortiz;Edgard Raffaelli Jr e col. (2ª Edição). São Paulo: Editora Zeppelini, 2002.

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